A pintura desassombrada de Teresa Magalhães
Branco
À entrada da exposição, como uma figura de convite, a tela Sem título, com data provável de 1969-1970, foi aí colocada por ser, no entender da própria artista, uma síntese de todo o seu trabalho, “simples e rigorosa”. Como Teresa Magalhães afirma, trata-se de “um nascimento acabado” por nela podermos encontrar as propostas futuras da sua pintura, é uma tela que quando foi feita anunciava o futuro. “O branco aqui é uma chapada”, diz-nos, “depois vai-se transformando”, “o branco é enérgico, é um assunto e, ao mesmo tempo, é uma dúvida.”
Contido no quadrado, de traçado não exatamente simétrico, colocado de viés na tela, o branco parece uma objetiva aplicada a um pormenor infinitamente ampliado, desmaterializado, de uma paisagem, ou um intervalo aberto sobre o acontecimento (sumptuoso) das cores. Este branco atrai-nos e repele-nos, cria uma respiração ao mesmo tempo que a sustém. É, também, uma citação Malevichiana, uma piscadela de olho à história da pintura moderna. Com três dos seus vértices cortados, o quadrado branco parece rodar sobre a tela, situando-se simultaneamente na pintura e fora dela. É ele o que prende o nosso olhar, como se o branco nos absorvesse para dentro do espaço da tela, não apenas desta pintura mas de qualquer possibilidade de pintura. Assunto e dúvida, afirmação e interrogação.
Aplicadas de diferentes modos, as cores acumulam-se nas margens desta suspensão branca, o azul claro num dégradé ondulante sobre o plano a cheio do vermelho, as manchas mais profundas de verdes e azuis salpicadas de minúsculas pontuações de vermelho, amarelo, ocre. Reencontramos a conjugação destas mesmas cores e técnicas em várias obras suas dos primeiros anos da década de 1970, quando a pintora experimenta gradações de vários tons de uma mesma cor, com predomínio dos azuis e dos verdes.
Esta pintura marca o abandono de um tema exterior, por mínimo que fosse (por vezes, uma só figura), para se concentrar no interior da pintura, liberta-a do constrangimento de um ‘assunto’ para se poder entregar à estratégia e à emoção da composição. Vem roubar o lugar pioneiro a duas composições abstratas de 1973, tinta acrílica sobre papel, e que até à redescoberta deste trabalho (num leilão, em 2019), eram as pinturas-charneira entre o universo pop ou pós-pop de Teresa Magalhães e a abstração, que foi a sua linguagem eleita ao longo de mais de trinta anos.
É na passagem para a abstração que o branco passa a ocupar um lugar fundamental na pintura de Teresa Magalhães, o branco em diálogo, em contraponto, com as outras cores, cuja paleta a artista explora e energicamente convoca sobre as telas. Muitas das suas obras abstratas são a conjugação de diferentes telas que justapõe e organiza espacialmente. Nesta exposição, encontramos trabalhos com estas características de 1989, 1995, 2001, até à grande composição com 18 telas, de 2001-2002. Propondo um jogo visual dinâmico com o espaço envolvente e com o espaço interior à própria obra, é constituída por nove telas retangulares colocadas na vertical, cinco pequenas telas quadrangulares e ainda quatro pinturas, cada uma realizada sobre duas telas em L, justapostas. O lugar dado ao branco na relação com as diferentes cores é fundamental no desenho da composição, na qual há um ritmo, ou um jogo, entre o vazio e o cheio, mais visível nas telas que ficam à direita do observador, gerando um desenho de volutas de cor que descem e sobem harmoniosamente.
Há um lado exploratório, não acomodado numa maneira de fazer, que é característico da pintura de Teresa Magalhães. E se, em determinadas obras, pinta sobre diferentes telas que dispõe espacialmente ou justapõe, presas entre si, como na pintura Sem Título, de 1989, ou no grande formato de 1995 (no qual ainda podem ecoar indícios da sua experiência de trabalho em Macau, em 1991 e 1992 ), em 2001 vai sobrepor três telas de diferentes formatos – retângulo, círculo e triângulo –, numa única obra abstrata, igualmente de dimensões consideráveis.
Como em relação a muitas outras questões, a artista não fornece muitas pistas sobre o seu processo de trabalho. Limita-se, com um ar divertido e sempre atento ao impacto das suas palavras no interlocutor, a enunciar a sua maior ou menor complexidade. Porquê esta ou aquela disposição espacial das telas que compõem um trabalho? Porquê a colagem de telas pintadas e recortadas ou a pintura direta sobre a tela? Sabemos, no entanto, que a sua pintura nasce sem estudos preparatórios, um ato espontâneo sedimentado em gestos em que o dom do uso da cor e do domínio do espaço se alia ao conhecimento da matéria. E que é uma pintura sem sombras, na qual só há lugar para a luz que faz nascer a cor.
Recreio
A série “Quando eu era pequena”, realizada entre 2017 e 2019, é constituída por vinte e seis telas redondas, cada uma com 70 cm de diâmetro, que Teresa Magalhães pintou e sobre as quais também colou bocados recortados de outras telas, anteriormente pintadas ou impressas com imagens fotográficas. O método de trabalho não é inédito na sua obra. Desde que em anos mais recentes, que podemos situar por volta de 2010 com a exposição da série «Era uma Vez… Outra Vez» (Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, Amarante), se decidiu por uma apropriação imagética do seu passado – que tanto inclui memórias pessoais como a própria obra anteriormente criada –, a colagem de tela recortada sobre tela tornou-se uma prática recorrente. Sobre uma superfície infiltra-se outra, como se se abrisse uma janela (o sistema visual Windows que conhecemos, pelo menos, desde o Renascimento).
Esta possibilidade de abertura de planos, que Teresa Magalhães faz corresponder a diferentes tempos é, mais uma vez, a expressão do seu desejo, ou mais do que do seu desejo, da sua vontade de liberdade expressa na pintura.
Os títulos remetem para a partilha de um código visual que também é de vida. Quem sabe o que eram os “Robertos”? Ou a “Madame Shau”? O que são ainda os “Gigantones”? Quem se lembra dos carrinhos de choque da Feira Popular? O que não sabemos está na imagem, que nos elucida o melhor que pode – não chega, no entanto, a explicar como era a extinta “Feira Popular”, uma referência recorrente, nem a ligação da pintora à “Avó Virgínia” ou à “Prima Ni”, indo de um geral, que ainda pode ser partilhável, ao particular que é exclusivo da sua própria vida e que atinge um grau extremo no título “Sou Eu”. “Sou”, afirma Teresa Magalhães, ao colar sobre a tela a imagem do seu rosto de criança que é a viva imagem da alegria rodeada pela sugestão abstrata de uma paisagem: areia, terra, mar, ar, um carrinho de bebé, um balde para as brincadeiras, rabiscos num possível labirinto, formas que se transformam, a infância. “Sou Eu” serve como chave para toda a série destas imagens-memória porque afirma o ponto de vista estritamente pessoal com que foi feita, reunindo fragmentos de recordações e nivelando, pondo literalmente ao mesmo nível, essa escolha. Quer se trate de imagens de obras de arte de coleções eméritas, ou das bonecas da artista, de diversões populares ou de fotografias de infância, as imagens são tratadas da mesma maneira e essa é uma afirmação da cultura Pop tão válida hoje como há cinquenta anos.
Dito de outra forma. Uma das principais características, ou atributos, e agora também já herança, da Pop foi misturar a cultura dita “erudita” e a cultura dita “popular”. Nunca mais se pensou, ou se viveu, da mesma maneira. E esse manancial de vida, de experiências, sensações, propósitos, integrou a matéria da obra de Teresa Magalhães nos vários registos que lhe entendeu dar. Mesmo quando optou pela abstração, afastando-se, ou mesmo negando, a matriz figurativa. Esta exposição enuncia, assim, os três principais registos da obra da pintora.
Erva
O primeiro destes registos (e o último dos três a ser referido) ocorre entre finais dos anos 1960 e o início da década de 1970. Permaneceu inédito até 2009, quando duas obras desse período foram expostas em «Anos 70. Atravessar Fronteiras» (Lisboa, FCG, 2009). Foi, depois, largamente apresentado na exposição «Pós-Pop. Fora do Lugar-Comum» (Lisboa, FCG, 2019) em que se reuniram trabalhos de artistas cuja obra refletia a herança Pop, ou um espírito da Pop, sem, contudo, terem ficado aprisionados no cliché comunicativo que essa linguagem (quase apetece dizer estilo) propôs. O trabalho de Teresa Magalhães havia permanecido inédito durante quase cinquenta anos,por dificuldades de exposição e de crítica, de quem na época própria falasse deles. Uma parte da sua obra seguia então o registo característico da Pop, praticamente desconhecido em Portugal, enquanto outros seus trabalhos, numa atitude claramente mais conceptual, investigavam a cor e a imagem.
É nesta ordem de interesses que se inscreve a obra de 1972, Sem título, facilmente identificável pela utilização de três hélices metálicas, ready-made, pintadas e colocadas sobre três fundos de diferente cor. Obra provavelmente não concluída, mesmo assim consegue um forte impacto visual pela utilização dos objetos de uso comum transfigurados em paleta, nos quais projetamos imediatamente o nosso desejo de movimento. A hélice do quadrado central, em que se estabelece um jogo de diferentes tons de verde, assenta num fundo de minúsculas e minuciosamente trabalhadas folhinhas verdes, um ‘chão’ de erva fresca como se o objeto aí tivesse caído. Há nesta obra, que se destaca de forma muito singular no conjunto da obra de Teresa Magalhães neste período, um desejo minimal a partir de um traçado muito específico da figura (que a aproxima de algumas composições do Fernando Calhau, criadas em Londres durante o seu período de formação na Slade School of Fine Arts). Esta depuração minimal vai rapidamente submergir com a opção de Teresa Magalhães pela pintura-pintura, numa linguagem gestual, assente no seu característico jogo emocional das cores e no registo abstrato anteriormente referido. Reemerge apenas pontualmente, visível numa segunda tela agora exposta, em que o branco ganha de novo proeminência.
De um modo ainda mais pronunciado do que na primeira pintura referida neste texto, também nesta pintura, bastante mais tardia – Sem título, 2003 (ver fig. …) –, o branco ocupa praticamente todo o espaço disponível da tela. Aparentemente saindo das margens , e espalhado de forma irregular, o amarelo instala-se, conquista terreno sobre o branco no qual se inscrevem três figuras-signo, três corpos flutuantes em que é visível o primado do desenho (parecem feitos a carvão). Estes signos indecifráveis têm a função de acentuar o plano da tela. Comentando esta obra, António Rodrigues referiu a “ocupação espontânea, obsessiva e vertiginosa do suporte”, realizada por esta pintura, na sua “relação directa com o corpo”. Também esta chamada de atenção ao “corpo” (da obra, do espectador, do artista, do espaço onde a obra e a sua visualização se inscrevem) tem a ver com uma vivência da arte que se modificou duradouramente durante os anos 1960 e que envolveu todas as diferentes linguagens, da Pop art ao Minimalismo. E todas estas relações são visíveis na obra de Teresa Magalhães, na sua criação de “um sítio-de-pintura” a partir do qual foi inventando a Vida.
Ana Vasconcelos
Junho de 2021
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