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Texto Emília Ferreira – Exposição Individual "A invenção da Vida"

A complexa investigação da vida

Teresa Magalhães fala com entusiasmo e pinta com a mesma luz que lhe atravessa as palavras. O gesto carrega-se de energia e a pintura emerge como uma força anímica que transborda das telas, transforma-as em objectos tridimensionais e até passa de umas para outras, rearrumando o espaço como se nos estivesse a abrir janelas consecutivas e, assim, dizer-nos que a pintura é mais do que um universo contido em suportes planos de linho ou madeira, para saltar daí para o mundo e nele nos envolver.

Há uma festividade e um atrevimento nesta pintura que tem poucos pares em Portugal. Da sua perspectiva álacre sobre o mundo sente-se, nas suas obras, uma vontade de afirmação de uma voz pessoal que tem vários contornos: domínio da cor, gosto dos grandes formatos, prazer de partilha. Sempre que me encontro com a obra de Teresa Magalhães penso em resistência. E, de acordo com as suas próprias palavras, essa resistência tem sido um modo de se reinventar, visualmente, através da obra.

Nascida em Lisboa em 1944, e criada até à idade adulta num país cinzento, o Portugal do Estado Novo, o seu entorno familiar proporcionou-lhe não apenas uma educação diversa na escolha das escolas, como também um contexto cultural propício ao desenvolvimento de uma personalidade artística. A liberdade de brincar e aprontar disparates, a tradição familiar da dança iniciada na Escola de Danças de Salão do Chiado, pelo seu avô Magalhães Pedroso e prosseguida pelo pai da artista, constituíram um poderoso contraponto inicial em relação ao meio nacional. Depois, enquanto estudante, primeiro no Colégio Portugal e depois no Liceu Francês, com as suas aulas mistas, ao tempo excepcionais num país que separava rapazes e raparigas, experimentou um ensino mais aberto do que então se ministrava no ensino oficial.

Ainda assim, como ela recorda num testemunho inédito, datado de 2018, que nos confiou na preparação desta exposição, “Sempre gostei de desenhar, mas o ensino secundário não tocava nas áreas artísticas, por esse motivo não percebi que seria essa a direção a tomar.” Devido a isso, o seu caminho passou ao longo de dois anos, durante os quais apenas completou três disciplinas, pela Faculdade de Ciências, no curso de Geofísica. Obrigada a desistir face ao seu fraco desempenho, seria um explicador de Física, ao ver os seus desenhos, a dizer-lhe a frase que a orientaria para o caminho certo: “o teu futuro é nas Belas Artes.”

O curso de Pintura, na então Escola Superior de Belas Artes, levá-la-ia a aprofundar, na sua criação, o lado saudavelmente dissonante da sua vida. O ano da revolução assiste à primeira aventura expositiva da artista. Contudo, a sua obra já começara uns anos antes, experimentando linguagens diversas, da abstracção da obra de 1969-70, até outras mais próximas da Pop Art, como se testemunha com a peça de 1972, Sem título, com o festivo trio de ventoinhas cujas cores das pás brincam com o fundo, transportando esses objectos de uso comum para dentro do universo da pintura (que aqui é também feita de colagem e de mais materiais inusitados) e levando-nos a olhar para ambos (ventoinhas e pintura) de outro modo, questionando os seus limites e as suas regras e sentidos. E criando-nos perguntas e perplexidades, outra função primordial da Arte.
A obra de Teresa Magalhães, largamente mostrada em exposições individuais e colectivas, tanto em Portugal como no estrangeiro, tem reflectido a sua atenção ao real e às suas mudanças constantes, numa análise detalhada que tem tanto de atenção, como de experimentação — como também de humor. Nas mais de três dezenas de obras desta exposição no Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, em Chaves, constatamos exactamente a dimensão de risco e de irreverência da sua expressão artística, a sua capacidade de dar testemunho das histórias da sua vida, com emoção e arrojo e de, a cada passo, a misturar com a potência e o acto da pintura.

O modo de Teresa Magalhães interpelar a pintura tem oscilado entre o pensamento do espaço compositivo (como se abrindo janelas dentro da pintura, ou usando as telas e demais superfícies como janelas para o mundo da própria pintura) e a reflexão sobre o modo como a pintura se mistura com a vida. Nesta exposição, ambas as linhas de investigação resultam bastante claras.

Antes, porém, permitam-me que me detenha nesta palavra: investigação. Forma organizada da curiosidade, a investigação é a actividade central de todo aquele que se dedica a uma profissão com algum carácter de imprevisibilidade: como as matérias da vida. E embora a associemos sobretudo às ciências, as artes têm, como tudo na vida, uma componente de investigação que tem tanto de laboratorial como a cozinha, a biologia ou — para o que aqui importa — a pintura.

Se um músico investiga as possibilidades secretas do instrumento da sua eleição e, como dizia o famoso Dizzie Gillespie, é preciso uma vida inteira para perceber o que não tocar, também para um pintor é necessário perceber o que deixar de fora. No caso, não as notas, mas, entre tudo o que lhe passa sob os olhos, o que retirar ou guardar, entre as imensas formas, linhas, manchas, luzes, sombras, do mundo e de si mesmo — e, enfim, escolher o que põe na tela. A isso damos o nome de investigação, porque escolher o que deixar de fora é eleger, em alguns momentos da vida, o que integrar na obra, correndo os riscos de funcionar ou não. A experiência é contínua e tão laboratorial como as composições formuladas pela química. Porque pintar, seja registando o mundo com clareza ou aproximando-se dele pelo lado mais alteroso, é um modo de conhecimento partilhado ou, como refere a própria autora:

“Pintura é uma imagem.
Pintura é um conceito, um raciocínio, uma ideia.
Pintura é uma linguagem.
Pintura é um sentimento, um desejo.
Pintura é um indivíduo.
Pintura é um país, uma época, um universo.
Pintura é uma aposta.”

Entre paisagens abstractas e memórias, esta exposição apresenta obras que cobrem um período do início dos anos de 1970 a 2019. Nelas se cruzam várias paisagens gerais: a do país e a individual, da artista, num registo que não se limita a imitar a realidade, nos seus modos concretos, antes a sugere e evoca, convidando-nos a contribuir, com o nosso tempo e demora, para o proposto encontro de emoções.

Contadora de estórias improváveis, em que quotidiano cultural e social e memória pessoal se mesclam, Teresa Magalhães cria labirintos para os quais nos convida a entrar. Esses labirintos podem ser uma pintura composta por 18 telas (a evocar outras tantas janelas abertas sobre a paisagem), ou as 26 telas redondas nas quais nos permite espreitar para a sua memória e vivências.

Nos últimos anos, uma certa tentação memorialista passou também a integrar a obra de Teresa Magalhães. Mais concretamente, entre 2017 e 2019, a artista criou uma série a que deu o significativo título genérico de “Quando eu era pequena”. Composta por vinte e seis telas redondas, que evocam memórias concretas da sua infância, numa clara relação com o exterior que a inundava, essa série permite-nos um olhar simultaneamente íntimo e irónico dos seus primeiros anos. Incluídas na pintura, imagens fotográficas dão prova de vida desses anos, testemunhando o quanto da memória da artista tem corpo visual e integrando essas revelações concretas numa massa pictórica de grande força e materialidade, em que o gesto da artista se transforma dos fundos densos e abstractos nas linhas curvas e sinuosas e nas figuras sintetizadas que sobre eles inscreve. Nestas telas, a cor irrompe com frenesi, num turbilhão de pinceladas. Sobre esse turbilhão de cores, recortes de outros turbilhões se encaixam, transmutando a pintura em colagem, e criando camadas de novos sentidos, de novos ritmos, de surpresas. Do centro dessa voragem criada por uma pintura carnal, emerge a memória, evocada na colagem de fotografias que vão dos álbuns pessoais (da artista e família), aos demais afectos e lugares que acolheram a sua vida: as bonecas, capas de livros, a Brasileira do Chiado, salas ou objectos icónicos de museus de Lisboa, carrinhos de choque, teatros de Robertos, uma gigante roda de feira. Nesta série “Quando eu era pequena” sumariza-se todo um programa de pintura que se afirma, de facto, como misturado com a vida. E no humor das memórias evocadas nos recortes fotográficas, no contraste das cores, do movimento e da voragem do tempo, o tempo ecoa benigno e poderoso, fazendo as cores — e a vida — dançar com mais vigor.

 

Emília Ferreira

 

 


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